07 março 2009

A Companheira

Eu ia saindo, ela estava ali
No portão da frente
Ia até o bar, ela quis ir junto
"Tudo bem", eu disse
Ela ficou super contente
Falava bastante
O que não faltava era assunto
Sempre ao meu lado,
Não se afastava um segundo
Uma companheira que ia a fundo
Onde eu ia, ela ia
Onde olhava, ela estava
Quando eu ria, ela ria
Não falhava
No dia seguinte ela estava ali
No portão da frente
Ia trabalhar, ela quis ir junto
Avisei que lá o pessoal era muito exigente
Ela nem se abalou "o que eu não souber eu pergunto"
E lançou na hora mais um argumento profundo
Que iria comigo até o fim do mundo
Me esperava no portão
Me encontrava, dava a mão
Me chateava, sim ou não?
Não
De repente a vida ganhou sentido
Companheira assim nunca tinha tido
O que fica sempre é uma coisa estranha
É companheira que não acompanha
Isso pra mim é felicidade
Achar alguém assim na cidade
Como uma letra pra melodia
Fica do lado, faz companhia
Pensava nisso quando ela ali
No portão da frente
Me viu pensando, quis pensar junto
Mas "pensar é um ato tão particular do indivíduo"
E ela, na hora "particular, é? duvido"
E como de fato eu não tinha lá muita certeza
Entrei na dela, senti firmeza
Eu pensava até um ponto
Ela entrava sem confronto
Eu fazia o contraponto
E pronto
Pensar assim virou uma arte
Uma canção feita em parceria
Primeira parte, segunda parte
Volta o refrão e acabou a teoria
Pensamos muito por toda a tarde
Eu começava, ela prosseguia
Chegamos mesmo, modéstia à parte
A uma pequena filosofia
Foi nessa noite que bem ali
No portão da frente
Eu fiquei triste, ela ficou junto
E a melancolia foi tomando conta da gente
Desintegrados, éramos nada em conjunto
Quem nos olhava só via dois vagabundos
Andando assim meio moribundos
Eu tombava numa esquina
Ela caía por cima
Um coitado e uma dama
Dois na lama
Mas durou pouco, foi só uma noite
E felizmente
Eu sarei logo, ela sarou junto
E a euforia bateu em cheio na gente
Sentíamos ter toda felicidade do mundo
Olhava a cidade
E achava a coisa mais linda
E ela achava mais linda ainda
Eu fazia uma poesia
Ela lia, declamava
Qualquer coisa que eu escrevia
Ela amava
Isso também durou só um dia
Chegou a noite acabou a alegria
Voltou a fria realidade
Aquela coisa bem na metade
Mas nunca a metade foi tão inteira
Uma medida que se supera
Metade ela era companheira
Outra metade, era eu que era
Nunca a metade foi tão inteira
Uma medida que se supera
Metade ela era companheira
Outra metade, era eu que era´

[Simone e Zélia Duncan]

Drama

Eu minto mas minha voz não mente
Minha voz soa exatamente
De onde no corpo da alma de uma pessoa
Se produz a palavra eu
Dessa garganta, tudo se canta:
Quem me ama, quem me ama?
Adeus!
Meu olho é todo teu
Meu gesto é no momento exato
Em que te mato
Minha pessoa existe
Estou sempre alegre ou triste
Somente as emoções
Drama!
E ao fim de cada ato
Limpo num pano de prato
As mãos sujas do sangue das canções

[Caetano Veloso]

Soneto de Fidelidade

De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

[Vinicius de Moraes]

Não existe pecado do lado de baixo do equador

Não existe pecado do lado de baixo do equador
Vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo vapor
Me deixa ser teu escracho, capacho, teu cacho
Um riacho de amor
Quando é lição de esculacho, olha aí, sai de baixo
Que eu sou professor
Deixa a tristeza pra lá, vem comer, me jantar
Sarapatel, caruru, tucupi, tacacá
Vê se me usa, me abusa, lambuza
Que a tua cafuza
Não pode esperar
Deixa a tristeza pra lá, vem comer, me jantar
Sarapatel, caruru, tucupi, tacacá
Vê se esgota, me bota na mesa
Que a tua holandesa
Não pode esperar
Não existe pecado do lado de baixo do equador
Vamos fazer um pecado, rasgado, suado a todo vapor
Me deixa ser teu escracho, teu cacho
Um riacho de amor
Quando é missão de esculacho, olha aí, sai de baixo
Que eu sou embaixador

[Não Existe Pecado ao Sul do Equador, Chico Buarque]