12 fevereiro 2008

Orvalho

De quando em quando

me perco

na procura da raiz do orvalho

e se de mim me desencontro

foi porque de todos os homens

se tornaram todas as coisas

como se todas elas fossem

o eco das mãos a casa dos gestos

como se todas as coisas

me olhassem

com os olhos de todos os homens


Raiz de Orvalho e Outros Poemas, Mia Couto

11 fevereiro 2008

Os livros, de Inês Pedrosa

OS livros são um amor pesado. Arrastam-se atrás de nós como fantasmas, mesmo antes de arrastarmos fisicamente com eles, de lugar para lugar. Os livros tornam-nos conservadores: naqueles momentos em que nos apetece mudar de casa, de país, de mundo, eles perfilam-se diante dos nossos olhos, solenes, um exército de capas rijas desafiando o nosso desejo de mobilidade. Revoltamo-nos: decidimos deixá-los para trás, oferecê-los, esquecê-los - mas eles não deixam. Porque quando passamos as mãos nas estantes, medindo forças com eles, há-de tombar-nos aos pés um livro que no chão, aberto, tem alguma coisa para nos dizer, alguma coisa que esquecêramos ou que agora subitamente descobrimos. Alguma coisa tão nossa que não reparámos nela. Um verso sublinhado, uma imagem, uma página que nos acelera o bater do coração e o galope do cérebro. Quantas vezes utilizámos os livros como refúgios do cérebro contra as investidas do coração? Quantas vezes os usámos como trincheiras sentimentais contra as razões da vida? Quantas vidas vivemos dentro deles, por procuração? Quantos anos passámos escondidos nas esquinas daquelas páginas, à espera que delas saltasse a surpresa redentora que, de tanto esperarmos, se esfumou? Os livros são os guardiões das nossas culpas: da muda acusação inscrita nas lombadas velhas e virgens dos que nunca lemos ao grito silencioso dos que se desmoronam nas nossas mãos, riscados, batidos, cheios de areia, manchas de café, marcas de lágrimas e até - nefando crime - sombras de tabaco. Por que gostamos tanto de alguns livros maus e nos negamos a conhecer tantos livros bons? Por que insistimos em levar até ao fim alguns livros que parecem recusar-nos? Por que mergulhamos em livros que sabemos que nos vão magoar? O que faremos às horas que perdemos a ler livros de que não recordamos uma frase? Poderemos ainda reencontrar aqueles que só depois de perdidos descobrimos que amávamos de verdade? Quantas vezes sacrificámos a escuta das nossas verdades à leitura das verdades de um livro? Quantas vezes nos enganámos nos livros, quantas vezes nos enganámos por fugirmos dos livros?
Decidimos então escolher - mas os livros ensinaram-nos também a precariedade das escolhas e das decisões. Há uma época da vida em que descobrimos que aquilo a que chamámos escolhas fundamentais resultou de um conjunto de factores e circunstâncias que, afinal, não dominámos. Fomos arrastados na enxurrada, sobrevivendo a temporais diversos - e agora, no promontório a que damos o nome de maturidade (porque ganhámos nos livros o vício de dar nome a tudo, classificar, organizar, compreender, explicar) olhamos para as escolhas que esboçámos e abandonámos, e esforçamo-nos por recomeçar o desenho da nossa vida, numa página em branco. Mas aprendemos que o branco puro não existe - nem o negro, nem o amarelo, nem o azul ou o vermelho. Nenhuma cor é afinal absoluta como nós pensávamos, nesse tempo em que chamávamos razão ao instinto, paixão ao desejo, amor ao medo, originalidade à arrogância e ousadia à provocação. Ou vice-versa - tínhamos um feixe de certezas absolutas, e uma incapacidade atávica de escutar as várias versões de uma mesma história. Talvez fosse apenas impaciência - mas nós chamavamos-lhe idealismo. Gostávamos tanto de livros que nos tornámos caçadores de palavras - e deixávamo-nos balear por elas, como se fossem canções. Agora olhamos para os livros como sinfonias, feitas de deambulações em torno de um tema recorrente, que se vai revelando em diferentes tons - à semelhança das nossas vidas.
Quando éramos jovens, sabíamos arrumar os livros. Agora não sabemos - cresceram, multiplicaram-se, por dentro e por fora. Sociologia ou Filosofia? História ou Economia? Quanto mais lemos, mais difícil se torna decidir. A Ficção nas estantes de cima - como se lêssemos um romance de cada vez; sempre pensámos que quando acabássemos de crescer seríamos menos sôfregos. Mas o que fazer aos romances que nos habituámos a reler como ensaios ou poemas, e que sentimos necessidade de folhear ao acaso, com uma saudade sensual, numa tarde de chuva?
Os inclassificáveis empilham-se pelos cantos da casa, à espera de uma hora iluminante - e os recém-chegados acabam por se misturar com eles. Ao fim de uma semana já não conseguimos encontrar nada, e odiamos os livros por atacado, bradamos contra eles, juramos livrar-nos deles. Depois folheamos um e dizemos: vamos escolher, separar, deixar para trás, mudar. Mas os livros agarram-nos, lambem-nos as mãos, atiram-se ao chão para que olhemos para eles, seduzem-nos através do cheiro, do toque, do pó das memórias. Encaixotamo-los, e mudamo-nos, de novo, com eles - embora saibamos que nunca teremos tempo para os ler todos, e que continuaremos a ser injustos com eles, a amá-los mal, a perdê-los, a maltratá-los, a emprestá-los e a arrependermo-nos. "Antes a experiência que a nostalgia", disse-me certa vez uma amiga. Um bom conselho serve para tudo, até para arrumar bibliotecas e perder o medo do caos e o travo da culpa que assombra o amor dos livros. In revista Única, edição do Expresso de 9 de Fevereiro de 2008.

04 fevereiro 2008

Eldorado

«O Eldorado. Salvatore só pensava nisso. Sabia perfeitamente que navegava contracorrente do rio dos imigrantes. Que ia ao encontro de países em que a terra abre brechas de fome. Mas, ainda assim, havia um Eldorado, e não conseguia deixar de sonhar com ele. A vida que o esperava não lhe ofereceria ouro nem prosperidade. Sabia-o. Não era isso que procurava. Queria outra coisa. Queria que, nos seus olhos, brilhasse a centelha de determinação que tantas vezes lera, cheio de inveja, no olhar daqueles que interceptava.»

«O Eldorado. Sim. Tinha razão. Aqueles homens tinham matado a sede. Tinham conhecido a riqueza dos que não desistem. Dos que sonham sempre mais.»

«Imóvel, deixo-me penetrar pelos ruídos e pelos cheiros. Nunca mais voltaremos. Vamos abandonar as ruas da nossa vida. Nunca mais beberemos chá, aqui. Estes rostos em breve se tornarão indistintos e se confundirão na nossa memória. (…) Tenho vinte e cinco anos. O resto da minha vida desenrolar-se-á num lugar do qual nada sei, que não conheço e que porventura não escolherei. (…) Deixaremos aqui o nosso nome, pendurado nos ramos das árvores, como uma peça de roupa de criança que ninguém virá reclamar.»

«Foi com certeza por isto que me acerquei de Boubakar e o ajudei. Não para o salvar, mas para me salvar a mim. Se o tivesse deixado preso ao arame farpado, nunca mais poderia dormir em paz e teria pisado este novo solo sem um estremecimento de prazer.»

«A beleza dos homens está nas decisões que tomam.»
Excertos retirados do livro Eldorado, de Laurent Gaudé.